quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Mário de Sá-Carneiro: o retrato de uma alma sem Deus.

Dispersão
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar,
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

Pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismastes nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus
Mas fechou-se saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
Eu nunca vi... mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas. . .

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar
Ninguém mas quis apertar
Tristes mãos longas e lindas

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!

Desceu-me nalma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em, uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço ...

...............................................
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
..............................................

Mário de Sá-Carneiro

Créditos: http://www.astormentas.com/biografia.aspx?tp=&id=Mário de Sá-Carneiro

Escritor modernista português, nascido em Lisboa,órfão de mãe aos dois anos de idade, o pai viajante, foi criado com os avós e uma ama. Começou a escrever poesia em 1900, quando entrou no Liceu do Carmo, redigindo, em 1905, um jornal satírico sobre a vida escolar denominado O Chinó, sendo impedido posteriormente pelo pai a continuar a escrevê-lo. Matriculado na Faculdade de Coimbra no curso de Direito, em 1915, não chegou sequer a concluir o ano. Mas foi nesse período que conheceu Fernando Pessoa, do qual se tornara amigo. Seguiu para Paris, com o objetivo de fazer a faculdade de Direito, mas acabou se dedicando a boemia dos cafés e salas de espetáculo. Em 1914, publica a novela " A Confissão de Lúcio" e a poesia "Dispersão". Juntamente com seu amigo Fernando Pessoa e outros fundaram a revista literária "Orpheu". Publicaram posteriormente a revista número 2, mas o pai se recusou a custear a revista nº 3 . Agravaram-se as crises sentimentais e financeiras do poeta, o que levou-o a se suicidar em 1916, com vários frascos de estricnina, em um Hotel de Nice,suicídio descrito por José Araújo, que Sá-Carneiro chamara para testemunhar sua morte.
Sem dúvida, Sá-Carneiro foi um homem solitário, ensimesmado, que cultivava a egolatria e que se perdia dentro de seu eu. Não tinha esperança de vida, vivia na boemia, no delírio, o que lhe causava confusão de sentidos, trazendo essas impressões para o seu fazer poético. Profundamente vazio, profundamente perdido, porque não queria estar perto de Deus.
Quando não nos atemos à esfera da egolatria e passamos a acreditar que o mundo não gira em torno de nós mesmos, reconhecendo Deus como centro, podemos avistar um porto seguro, para o qual podemos voltar em qualquer momento de nossa existência, porto este que pode ser um referencial no tenebroso mar que é a vida. O homem, abandonando essa referência, perde o rumo e o sentido de sua existência. Portanto, não sejamos tão egoístas, tão narcisos como o sentimento demonstrado na poesia de Sá-Carneiro. As vezes nos sentimos como ele, mas ao nos sentirmos assim, devemos nos apegar à nossa salvação, ao verdadeiro sentido de nossa vida: louvar ao Senhor sobre todas as coisas, buscar primeiro o reino de Deus e saber que Ele tem cuidado de nós. Ele é nosso pai que não nos abandona, nossa proteção e nosso refúgio.